17 de fevereiro de 2010

DO ESTADO DE DIREITO

Chamam-me Jesus. No dia de Carnaval, estava eu com a malta do dominó na galhofa (ou a falar a sério no uso da minha liberdade de expressão, já nem me lembro bem) no Café Central a dizer que o Joaquim merecia era levar com um pinheiro e o Manuel levar umas palmadas, pois aqueles bandidos acusaram-me de ter feito batota. Ora, a caminho de casa, o Joaquim teve a infelicidade de embater com a sua Zundapp contra um pinheiro, a 20km/h, tendo riscado o depósito. Ao Manuel não aconteceu nada. No dia imediatamente a seguir, a imprensa constituiu-me arguido nas primeiras páginas, com a certeza de que eu sabotei uma vela da motorizada, acrescentando a história de que eu teria oferecido à mulher do Manuel manuais de práticas sexuais sadomasoquistas do meu neto – o que apesar do tom assertivo do artigo e da firme credibilidade da fonte anónima, era mentira, até porque o meu neto é um pacifista. Soube, passado algum tempo, que no dia de Carnaval, o jornalista, padre da paróquia e dono do jornal, homem de grande influência na terra, estava no café ao meu lado, disfarçado de meia de leite. Ah, o título era “Jesus já prá cadeia”. Com isto, o Tónio, decano do dominó, e com a anuência de todos, decretou a pena: 3 meses sem jogar. Entretanto, nesse período, o Mário ficou viúvo e entrou para o grupo do dominó. Por isso e até hoje nunca mais tive lugar na mesa. E, apesar ter sido eleito, fui ainda expulso da Comissão Fabriqueira, substituído pelo Mário, conhecido por usar muito a liberdade de expressão para criticar, estilo pessimismo bota-abaixo, e que nunca tinha apresentado uma proposta para a freguesia nas nossas sessões públicas, nem sequer sobre a limpeza das valetas. Mantive-me sereno e apenas interpus uma vulgar Providência Cautelar para evitar esta deturpação das eleições, mas o documento só foi recebido e assinado na sala de catequese da igreja, usada pela Comissão, quando o padre lá foi. Apesar de leigo, pareceu-me que a Justiça foi incompetente, pois, como é sabido, é difícil encontrar um padre numa igreja. Como a justiça demorava a tomar decisões e porque não sou incoerente ou homem de meias-palavras, apresentei na assembleia do povo uma Moção de Censura à Direcção da Comissão que interveio dizendo que a minha atitude era uma perseguição aos jornalistas e violava os artigos 37, 40 e 42 da Constituição. Como nunca li o documento e já estava tão confuso com tudo isto, votei contra a minha própria moção e também passei a acreditar que era culpado. À noite, para me animar, agarrei no telefone junto à janela do rés-do-chão e liguei para o Sempre a Somar da TVI. Era uma linha de quatro letras e tinha duas hipóteses: saíram-me as palavras “mata” e “João”. Senti um barulho lá fora - estava a ser escutado! Entretanto, chega o padre à minha porta com uma máquina fotográfica e, mais tarde, um carro da polícia. Fui detido preventivamente porque o João, utente do lar, tinha falecido esta noite com uma intoxicação alimentar.

Passados uns bons anos fui ilibado de tudo e as minhas propostas de modernização da freguesia nunca foram postas em prática, mas isso agora também já não interessa.


Pintura: "Confusion" de Bobby Paiva

1 comentário:

MIM disse...

Infelizmente é mesmo isto que estamos a assistir. Pesado legado que a nossa geração tem. Mas cabe-nos a nós mostrar que na causa pública que se presta não vale tudo, a liberdade pela qual os homens de 74 lutaram nada tem a ver com a liberdade de poder-se acusar alguém sem barreiras.