24 de maio de 2010

Os azares de Cavaco

O Presidente fez uma comunicação ao País acerca da lei que permite o casamento civil de pessoas do mesmo sexo. Decerto por azar, acertou no dia mundial de luta contra a homofobia, celebrado a 17 de Maio. Mas acabou por o assinalar da melhor forma, ao promulgar, colocando Portugal na vanguarda internacional da luta contra a discriminação com base na orientação sexual.


Fê-lo contrariadíssimo, é certo: a comunicação não foi aliás mais que a expressão dessa contrariedade, uma espécie de queixa ao País. Queixou-se o PR por exemplo da inexistência de "um consenso partidário alargado" quando, azar, a lei, proposta pelo Governo, foi aprovada por quatro dos seis partidos que compõem o Parlamento, de acordo com propostas explicitamente sufragadas nas eleições de Setembro (o PSD e o CDS/PP nada continham no programa eleitoral relativo aos direitos dos casais de pessoas do mesmo sexo). E queixou-se de não terem sido copiadas "soluções jurídicas" de países onde, alega, "à união de pessoas do mesmo sexo foram reconhecidos direitos e deveres semelhantes aos do casamento entre pessoas de sexo diferente, mas não se lhe chamou casamento, com todas as consequências que daí decorrem" - exemplificando com o Reino Unido, a Dinamarca e a Alemanha, países cujas "soluções" - azar! - permitem a adopção. Queixou-se ainda do curto número de países que consagraram a igualdade no acesso ao casamento, "esquecendo" - azar, de novo - os seis estados norte-americanos que o fizeram.


É, o Presidente anda azarado. De tal modo que ao requerer ao Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva do diploma mencionou todas as normas da lei que o TC, num acórdão de Julho de 2009 assinado por cinco dos 13 juízes, já "passara", esquecendo no pedido a única norma de duvidosa constitucionalidade, a da interdição da adopção. Ainda por cima, é a segunda vez que este Presidente tem um lapso destes (a primeira ocorreu com o Estatuto dos Açores).


É pois da mais elementar urgência que Cavaco encontre conselheiros e assessores mais habilitados, que lhe impeçam erros tão grosseiros e, sobretudo, que conheçam as atribuições e deveres presidenciais. É que de outro modo pode haver quem comece a suspeitar de que usa os pedidos de fiscalização ao TC para efeitos que nada têm a ver com os seus objectivos declarados, numa clara perversão das respectivas atribuições - as do tribunal e as do presidente. E que é à Constituição que jurou respeitar e fazer cumprir que tem, afinal, azar. A Constituição que determina as regras da democracia portuguesa, entre as quais essa de que, dir-se-ia, o Presidente se veio queixar aos portugueses - a de que o Parlamento que elegeram e que os representa manda mais que ele. Azar, azar.

Fernanda Câncio, hoje no DN

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